Por que perdemos a fé na democracia?
- Juliana Santos
- 16 de abr. de 2019
- 8 min de leitura
A crise de representatividade se expressa na alta rejeição dos principais presidenciáveis de 2018
O Brasil de poucos
Que a política brasileira é um jogo para poucos, não é novidade.
O curto período democrático do país trouxe heranças do período colonial, com oligarquias comandando a maior parte das instituições, sobrenomes que se repetem pelas candidaturas e mandatos, siglas de partidos que se alternam no poder – como um jogo, de fato.
Ainda que agentes supostamente “novos” surjam, a estrutura política é a mesma há séculos, não acompanhando as mudanças na sociedade. Isto implica em um cenário que não reflete a realidade brasileira, em rostos extremamente parecidos entre si e distintos daqueles que vemos nas ruas, e em propostas e governos que não mais dialogam com as necessidades do povo.
Por tratar-se de uma estrutura rígida e de difícil acesso, minorias sociais e pessoas de baixa renda encontram uma série de empecilhos ao tentar se inserir em alguma das esferas de poder. É uma situação de exclusão institucionalizada, auxiliada pela série de opressões cotidianas já muito denunciadas por movimentos sociais.
A falta de acesso à educação de qualidade barra a entrada no mercado de trabalho. A situação econômica, já muito precarizada pela distribuição de renda extremamente desigual, apenas se agrava. E, nisso, está uma das maiores dificuldades para a entrada na política: o financiamento de campanha.
Com a maior parte do financiamento público partidário indo para candidaturas de maior popularidade – que são justamente as mais tradicionais, os rostos mais conhecidos -, a entrada de mulheres, negros, LGBTs e outras minorias é muito difícil. Sem o dinheiro para uma campanha relevante, que chegue ao público, nem mesmo pessoas que se identificam com esses candidatos alternativos irão lhes dar seu voto, simplesmente por não ouvirem falar deles.
Estas dificuldades apenas perpetuam o quadro de não-representação. Ano após ano, a população não se vê entre seus representantes, e não cria sobre eles qualquer tipo de identificação ou confiança. Como pondera Laura Benda, juíza trabalhista e presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), “sem dúvida a baixa diversidade na composição dos poderes é um obstáculo, porque ninguém vai tratar tão bem de determinadas questões quanto as pessoas que compõem aquele universo”. Daí, vêm a necessidade de diversificar este quadro, para melhor atender à pluralidade de interesses e visões da população brasileira. “O lugar de fala não é só pela representatividade ao falar, mas também porque há uma compreensão mais profunda das necessidades de cada grupo”.
Quem vota no Brasil
O eleitor médio brasileiro é uma mulher. Ela, de meia idade, tem ensino fundamental incompleto, e reside no sudeste.
Os dados do Tribunal Superior Eleitoral sobre o eleitorado deste ano revelam uma continuação das tendências já identificadas entre eleitores em 2014 – o número de cidadãos aptos a votar segue crescendo, porém a parcela de eleitores jovens têm diminuído. Cada vez menos eleitores menores de 18 anos participam da escolha, enquanto o outro segmento cujo voto é facultativo, os maiores de 70, tem expressão maior.
Com 52,5%, as mulheres são maioria. A faixa etária mais expressiva é dos 45 aos 59 anos, compreendendo quase 25% do total. Em segundo lugar, com 21%, está a faixa dos 21 aos 34 anos. E, num preocupante reflexo da população brasileira no geral, a grande maioria tem baixo grau de escolaridade, com 25% não chegando a concluir o ensino fundamental, e menos de 10% tendo completado o ensino superior.
É este o perfil ao qual os candidatos tentam moldar suas campanhas e propostas. Trazem abordagens mais sensíveis ao público feminino – o que explica a maior presença de temas como violência contra a mulher e machismo estrutural nos debates e propostas -, adaptam a linguagem a um público mais envelhecido, e tentam falar ao contingente de brasileiros que sofre com a precariedade do sistema de ensino e a intransigência do mercado de trabalho.
Ainda, a diversidade entre nosso eleitorado só tende a aumentar. O segmento dos brasileiros residentes no exterior cresceu palpavelmente entre 2014 e 2018, e aumentou em 41% desde o ano passado. As atenções também estão em outro grupo que, pela primeira vez neste ano, poderão expressar sua identidade na hora de votar: são os 6.256 transexuais e travestis que solicitaram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a inclusão do nome social em seu título de eleitor. Trata-se de um importante avanço no sistema eleitoral, conquistado após anos de luta por movimentos sociais, e que reflete perfeitamente a diversidade que a democracia brasileira começa – embora com atraso – a contemplar.
No entanto, este perfil é radicalmente diferente da média dos candidatos.
Com porcentagem singela de 31% de mulheres – número curiosamente próximo à cota obrigatória aos partidos, de 30% de candidaturas femininas -, e quase metade dos candidatos com ensino superior completo, a provável composição do poder público a partir de 2019 dificilmente é reflexo da sociedade que por ele será representado. Ainda, com mais da metade sendo branca, ocupando profissões como empresário (10%), advogado (6%) e deputado (3%), é fácil perceber como o problema da representação se perpetua.
Desconfiança generalizada
Não representados e não pertencentes ao processo político, os brasileiros colocam cada vez menos confiança nas instituições. O sentimento é palpável, e tem sido tema de diversas pesquisas.
Segundo o Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas da USP, do qual faz parte o cientista político José Álvaro Moisés, 9 em cada 10 brasileiros acreditam que nenhum partido os representa, e 82% não consegue apontar um político capaz de tirar o país da crise. A desconfiança não é exclusiva ao poder executivo, estendendo-se para quase todas as instituições do poder público. O Índice de Confiança Social do Ibope registrou em 2018 os menores índices em dez anos: apenas o Corpo de Bombeiros, as Igrejas, a Polícia Federal e as Forças Armadas registraram acima de 60 pontos, sendo o primeiro o mais alto, com 82. O Presidente da República, os partidos políticos e o Congresso Nacional registram, respectivamente, 13, 16 e 18 pontos, em uma escala de 100 – os menores índices.
“Uma crise como essa não deveria gerar uma desconfiança na democracia, no Estado democrático em si, ao contrário, deveria ser um estímulo ao fortalecimento das instituições”, contempla Laura Benda. “E agora vivemos o risco contrário. Se nenhuma funciona muito bem, então nenhuma é importante, tudo pode ser destruído.”
Os dados, apesar de chocantes, apenas refletem uma realidade já conhecida e esperada. Com pouquíssimo experiência de Estado democrático após longos períodos de autoritarismo, o Brasil não teve tempo o suficiente para consolidar suas instituições e processos políticos. Além do mais, estas nunca garantiram efetivamente os direitos da população ou o bom funcionamento dos serviços públicos – resumidamente, em seu curto tempo de existência, as instituições públicas nunca mostraram ao brasileiro ao que vieram. Logo, nunca deram razões à sociedade para confiar nelas.
Isto não significa a insuficiência da democracia como sistema político, mas revela as falhas que uma democracia representativa mal consolidada pode apresentar. “A democracia representativa em si tem suas limitações. Essa distância que existe entre representante e representado sempre vai gerar um empecilho para que as pessoas sejam exercentes plenas de sua cidadania”, explica Benda. No entanto, estas limitações têm se agravado, à medida que o Estado se distancia das demandas da população.
Saídas para a crise
A estrutura democrática brasileira, que sequer atingiu real consolidação em seus poucos anos de existência, vê-se novamente ameaçada. Os partidos, mesmo em sua abundância numérica, falharam em representar e manter diálogos com a população, cuja confiança é repetidamente despedaçada a cada nova denúncia de corrupção.
“O Estado democrático de direito, nesse momento, é um simulacro”, constata Laura Benda. “As bases que o consolidam, o controle do poder, o equilíbrio entre os poderes e a garantia dos direitos fundamentais, tudo isso está ameaçado ou ruindo.”
Além de crises geradas entre as paredes do Congresso, do Senado e das Câmaras (entre elas, conflitos de governança, esquemas de corrupção e abuso de poder, e golpes legitimados ou não pelas instituições), existe a preocupante descrença da sociedade civil.
A população perdeu a fé no processo democrático, por sentirem-se afastadas dos procedimentos democráticos. Apesar de, pela teoria da democracia representativa, a soberania estar com o povo, não vem sendo reconhecida ou exercida. Neste quadro, se verificam duas tendências: a aversão à política, pelo afastamento e negação de seus próprios direitos de cidadão, e uma crescente tendência ao autoritarismo, à intolerância, ao fascismo.
Se o cidadão não se sente um agente político, e sequer compreende os procedimentos para participar ativamente, é natural que parta para um caminho que lhe parece mais simples: ceder seus direitos e sua voz a uma figura mais autoritária, centralizadora. “E isso não está acontecendo porque as pessoas são fascistas, necessariamente, mas porque estão desesperadas. Precisam resolver suas próprias vidas, e isso parece uma resposta mais simples, mais rápida, mas é claro que não é. Isso aprofundaria um processo de exclusão, de desigualdade, de eliminação do outro”, pontua Benda.
O que se verifica é que, no momento, o clamor pela democracia e pelos direitos do cidadão são reduzidos, quando deveriam estar mais altos do que nunca. Se o processo histórico que vivemos é o de despolitização, a saída pode ser justamente o movimento inverso.
Para o cientista político José Álvaro Moisés, a população precisa compreender que a situação política os afeta diretamente e, portanto, deve se envolver com ela. No entanto, esse envolvimento pode se dar de forma diferente ao que estamos acostumados: sem líderes de forte apoio popular, que consigam trazer ideias para reformular o sistema de representação, a sociedade deve se organizar para apoiar e eleger indivíduos que possam trazer soluções alternativas.
Laura Benda, no entanto, observa que o papel das instituições e seus indivíduos não é protagonizar ou guiar uma resposta popular, mas acompanhá-la, atendendo às demandas da sociedade. “Não existe um iluminado, da elite ou da academia, que vai chamar o povo consigo. O que a gente pode fazer é estar junto nesse processo, tentar ouvi-lo também. A população em geral está indo em direção a respostas mais autoritárias, mais simplistas, porque suas demandas não estão sendo ouvidas”.
Moisés também comenta que o sistema partidário atual falhou, e pouco tem feito para recuperar a confiança dos representados. É possível que uma alternativa seja investir em ações de participação direta da população, já que a mediação partidária está prejudicada. No entanto, como atenta a presidente da AJD, o Estado brasileiro não investe em mecanismos de democracia participativa há tempos. Plebiscitos e orçamentos participativos, por exemplo, estão cada vez mais escassos, tornando o momento do voto um dos únicos em que o cidadão percebe sua participação na democracia.
Uma democracia digital
Outro caminho não convencional, e ainda pouco explorado, é a participação digital. José Álvaro Moisés comenta que o jovem eleitor, usuário cada vez mais assíduo das redes sociais, esperou que a Internet fosse constituir um meio de aumentar sua participação política e seu contato com as instituições e seus representantes. No entanto, até hoje, esse contato não aumentou da maneira esperada.
Para o sociólogo Sérgio Abranches, este é um dos mecanismos com maior potencial para reestabelecer a democracia entre uma gama de eleitores cada vez mais conectada. “O caminho da democracia é se digitalizar”, comenta o autor, para o Canal Curta!. “Ter mais participação das pessoas via redes sociais, e ir formando uma espécie de poliesfera digital, na qual as pessoas possam conversar democraticamente, trocar ideias e inclusive fazer escolhas, e transmitir isso para o sistema político”. É preciso atentar, no entanto, para o poder da Internet de amplificar vozes de maior controvérsia, como discursos de ódio ou autoritários.
Com os serviços públicos, os direitos humanos e a própria estrutura democrática do país em risco, é papel de cada indivíduo prevenir sua demolição. Para uma população tão fragilizada por frequentes ataques aos seus direitos e confiança no sistema, é urgente o fortalecimento de sua participação direta na política. A inclusão de vozes populares e verdadeiramente representativas pode renovar a fé da sociedade na democracia, e impedir que esta continue a ruir, nos direcionando a fins cada vez mais autoritários.
A mudança, no entanto, não é instantânea. Não será garantida em quatro anos, por qualquer seja o nome escolhido ao final de outubro. Trata-se de um processo de mudança estrutural, que, além de garantir a soberania popular, assegure o bem estar desta população. Benda completa: “As pessoas precisam ter mais acesso a serviços públicos, à educação, distribuição de renda, para criar confiança. Sem isso, vai ser só uma falácia.”
Leia a reportagem completa, em conjunto com o repórter Breno Queiroz, neste link.
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